Linha de produção |
Sua riqueza nada tem a ver com os custos de produção do que a Microsoft vende: i.e., não é resultado de ele produzir bom software a preços mais baixos que a concorrência, nem de ‘explorar’ seus operários com melhores resultados (a Microsoft paga salários relativamente altos aos operários intelectuais que contrata). Fosse assim, a Microsoft já teria falido há muito tempo: as pessoas teriam escolhido sistemas abertos, como o Linux que são tão bons, ou até melhores, que os produtos Microsoft. Milhões de pessoas continuam a comprar software da Microsoft porque a Microsoft impôs-se, ela mesma, como padrão quase universal, praticamente monopolizou o campo, encarnação do que Marx chamou de ‘intelecto geral’[1], significando conhecimento coletivo em todas as suas formas, da ciência ao saberes práticos. Gates efetivamente privatizou parte do intelecto geral e enriqueceu apropriando-se do lucro que extraiu dessa apropriação.
A possibilidade de que o intelecto geral fosse algum dia privatizado jamais passou pela cabeça de Marx, nem por perto de seus escritos sobre o capitalismo (em boa parte porque Marx passou ao largo das dimensões sociais do capitalismo). Mas a questão está na base das lutas de hoje em torno da propriedade intelectual: o papel do intelecto geral – baseado no conhecimento coletivo e na cooperação social – aumentou no capitalismo pós-industrial, assim como a riqueza que se acumula, fora de qualquer proporção com o trabalho usado para produzi-lo.
O resultado não está sendo, como parece que Marx esperava, a autodissolução do capitalismo, mas a gradual transformação do lucro gerado pela exploração do trabalho em renda apropriada mediante a privatização do conhecimento.
Vale o mesmo para os recursos naturais, cuja exploração é um das principais fontes de lucros no mundo. Daí brota a luta permanente entre os aspirantes àqueles lucros: os cidadãos do Terceiro Mundo, ou as corporações ocidentais. Há alguma ironia na evidência de que, ao explicar a diferença entre o trabalho (que, usado, produz mais valia) e outras commodities (cujo valor é integralmente consumido, ao serem usadas), Marx fale do petróleo como exemplo de commodity ‘comum’. Hoje, qualquer tentativa de ligar aumentos e quedas do preço do petróleo a aumentos e quedas nos custos de produção ou no preço do trabalho explorado seria absolutamente sem sentido: os custos de produção são desprezíveis, como proporção do preço que se paga pelo petróleo, preço que, de fato, é o lucro que os proprietários dos recursos podem exigir, graças à oferta limitada.
Uma modificação na função do desemprego é outra das consequências do aumento na produtividade, por causa do crescimento exponencial no impacto do saber coletivo. O desemprego é produzido por um capitalismo muito bem-sucedido (maior eficiência, maior produtividade etc.) – que torna os trabalhadores cada vez mais inúteis: o que deveria ser uma bênção – haver cada vez menos trabalho braçal – converteu-se em maldição. Ou, dito de outro modo: a chance de ser explorado num trabalho de longo prazo é vista hoje como privilégio. O mercado mundial, como diz Fredric Jameson, é agora “um espaço no qual todos foram um dia trabalhador produtivo e no qual o trabalho, por todas as partes, começou a ser precificado fora do sistema”. No atual processo da globalização capitalista, a categoria do desempregado já não está confinada ao “exército de trabalho reserva”; inclui também, como Jameson escreve, “essas populações massivas em todo o mundo que, como aconteceu, caíram fora da história”, que foram deliberadamente excluídas dos projetos de modernização do Primeiro Mundo capitalista e descartadas como casos terminais sem esperança”: os chamados estados falidos (República Democrática do Congo, a Somália), vítimas de fome epidêmica ou desastre ecológico, presas na armadilha de pseudo arcaicos “ódios étnicos”, objetos de filantropia de ONGs ou alvos da “guerra ao terror”.
A categoria dos desempregados expandiu-se, pois, e hoje inclui vastas quantidades de pessoas, dos temporariamente desempregados, passando pelos já não empregáveis e permanentemente desempregados, até os habitantes de guetos e favelas (gente que o próprio Marx várias vezes descartou como ‘lumpen-proletários’), chegando, finalmente, a populações inteiras ou estados excluídos do processo capitalista global, como os espaços em branco dos mapas antigos.
Há quem diga que essa nova forma de capitalismo oferece novas possibilidades de emancipação. Essa, seja como for, é a tese de Hardt e Negri em Multidão, onde tentam radicalizar Marx, dizendo que, se se decapitar o capitalismo, obteremos o socialismo. Marx, como esses autores o veem, foi historicamente limitado pela noção de trabalho industrial mecanizado, centralizado, automatizado e hierarquicamente organizado, razão pela qual entendeu o “intelecto geral” como algo de certo modo semelhante a uma agência central de planejamento; só hoje, com o crescimento do “trabalho imaterial”, essa virada revolucionária tornou-se “objetivamente possível”. Esse trabalho imaterial estende-se entre dois polos: do trabalho intelectual (produção de ideias, textos, programas etc.) ao trabalho afetivo (dos médicos, babás e aeromoças). Hoje, o trabalho imaterial é “hegemônico” no sentido em que Marx proclamou que, no capitalismo do século 19, a grande produção industrial era hegemônica: porque se impõe não pela força dos números, mas pelo papel estrutural chave, emblemático que desempenha. Emerge daí um vasto novo domínio chamado “o comum”: conhecimento partilhado e novas formas de comunicação e cooperação. Os produtos da produção imaterial não são objetos, mas novas relações sociais e interpessoais; a produção imaterial é biopolítica, a produção da vida social.
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