Especialmente os Ateus
Em recente artigo ao Correio Braziliense, Frei Betto defendeu a posição de que seus torturadores “praticavam o ateísmo militante ao profanar com violência os templos vivos de Deus: as vítimas levadas ao pau de arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à morte… Ateísmo militante é, pois, profanar o templo vivo de Deus: o ser humano.” Não se trata de afirmação impensada, uma vez que repete artigo anterior, e foi confirmada em entrevista nos seguintes termos: “Toda vez que alguém viola o ser humano, violenta, oprime, está realizando o ateísmo militante.”
O texto gerou muitos protestos de ateus, que ficaram ainda mais indignados com a repetição do insulto, pronunciada com toda indiferença e sem qualquer tentativa de desculpa. Infelizmente, parece ser necessário afirmar e repetir com toda clareza aquilo que deveria ser óbvio: ver-se igualado a torturadores e a atos de tortura é um ultraje à dignidade de qualquer indivíduo, ateu ou não. Nenhum tipo de racionalização justifica essa associação.
É fundamental lembrar que o ateísmo repousa no campo das ideias: ele nada mais é do que a ausência de crença em deuses. Não haveria nada de errado em criticá-lo, pelo mesmo motivo que não há nada de errado em criticar o liberalismo ou o socialismo.
No entanto, as afirmações de Betto são de outra ordem, pois se referem a pessoas. Militante é o indivíduo que milita ou atua em alguma causa. Assim, todos os falantes da língua portuguesa, inclusive o frei, entendem que ateísmo militante é a ação de quem promove o ateísmo. Nenhuma idiossincrasia de Betto mudará o significado direto que o resto dos mortais tem dessa expressão. Sua ofensa está em propor que violência para com o outro significa ateísmo militante, implicando entre outras coisas que torturadores são ateus. Isso é inaceitável.
O raciocínio do religioso não resiste ao mais óbvio exame. Pode-se virá-lo de ponta-cabeça afirmando que todo indivíduo é um templo do humanismo secular, e que portanto os torturadores na verdade praticam religiosidade militante. Mais importante ainda é o fato de que rebatizar à plena força expressões já existentes para lhes dar significado espúrio e negativo é um inegável sintoma de preconceito.
Atenção: propostas repulsivas à frente. Seria aceitável renomear um vaso sanitário como “negro militante” e prosseguir com todas as frases que isso acarretaria? Sob que pretextos aceitaríamos que se chamasse o tráfico de drogas de “prática do judaísmo”? A justificativa para esse estupro semântico é indiferente. O que importa é que ele revela uma desinibida sanha para identificar o outro com o mal. Que nome se dá a essa abjeta inclinação?
Só para quem que vê a bondade identificada com a pele branca, e a maldade associada à negra, faz sentido dizer que brancos maus têm alma negra, ou o oposto: negro de alma branca é bom. Em seu texto, Frei Betto não hesita em fazer a mesmíssima coisa, imaginando que até inquisidores e pedófilos da Igreja Católica praticam ateísmo militante(!), a despeito de seu óbvio catolicismo: são os brancos de alma negra. Quando afirma “quem ama o próximo ama a Deus ainda que não creia”, são os negros de alma branca: ateus bons de coração em verdade são como crentes. Ora, se não é lícito identificar maldade com judaísmo, cristianismo, negritude ou qualquer outra posição, militante ou não, então o mesmo vale para o ateísmo.
Também não há como engolir a insistente alegação de Betto de que sua acusação pesa apenas sobre a militância, não sobre o ateísmo em si. Um dos motivos é o fato de que a versão expandida de seu texto original, amplamente reproduzida online, afirma com todas as letras: “raros os presos políticos que professavam convictamente o ateísmo. Nossos torturadores, sim, o faziam escancaradamente ao profanarem, com toda violência, os templos vivos de Deus”. Fazendo a análise sintática, tem-se a seguinte oração equivalente: nossos torturadores professavam convictamente o ateísmo de forma escancarada.
Betto está obviamente preocupado em defender o respeito a ideias, proposta que repete várias vezes, o que lamentamos profundamente. Ideias não têm direitos nem dignidade: seres humanos têm. Ideias e crenças não precisam ser protegidas nem respeitadas. Seres humanos precisam. Essa parece ser a grande diferença moral entre ateus e religiosos: para nós só há imoralidade quando se causa sofrimento àqueles que podem senti-lo. As ideias que se virem. Para Betto e a maior parte dos religiosos, as ideias têm direito de não serem criticadas, mesmo quando falsas. Os humanos que se virem.
Especialmente os ateus.
Tá mais pra "passa fora, moleque". Merecidíssimo, aliás. O pior é o que cristãozinho não se emenda, acha que está certo, não faz autocrítica nem vai confessar o pecado do preconceito. O preconceito contra ateus, pra ele, é uma coisa natural. Ele nem sequer o enxerga. Assim era o racismo no tempo da escravidão.
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